Quando a Vida continua: notas de uma psicóloga
- Micheli Aparecida de Paula

- 20 de set.
- 3 min de leitura

Esses dias me peguei vendo registros antigos salvos em redes sociais mortas e me deparei com um vídeo cuja legenda era: “do tempo e das purpurinas de lágrimas passadas...”.
A qualidade do vídeo era duvidosa, mas a mensagem não: o que eu queria registrar ali era o sofrimento e a dor pela ausência de perspectivas do agora daquela ocasião.
O ano era 2010 e eu tinha acabado de voltar da faculdade, sem plano nenhum para o “depois”.

2010: a desesperança como paisagem
Entenda: eu ter feito uma universidade pública era quase um milagre, dadas as circunstâncias de onde eu vim.
Foram cinco anos explodindo horizontes da cognição e da sensibilidade: muitos afetos revolucionários, muitos encontros de alma. Mas de burocracia e de futuro planejado, aprendi pouco — meu foco não era esse.
Hoje, 15 anos depois, sei que sou uma pessoa de hiperfocos naquilo que me afeta a partir do estômago. Conheço melhor os contornos daquilo em que desejo investir e acumulei repertório de experimentações.
Mas em 2010 eu não sabia disso. A desesperança e seu aliado desespero embebiam cada célula do meu corpo. O medo e as inseguranças desenhavam cenários de fatalismo que minavam minhas forças criativas.

Purpurinas de lágrimas passadas: memórias, lutas e poéticas do viver
O vídeo daquela época foi gravado numa fábrica abandonada. Uma fresta de luz atravessava o espaço e iluminava partículas de poeira.
Meus olhos marejados chamaram aquilo de “purpurinas de lágrimas passadas”.
Ali, eu buscava desesperadamente poetizar a Vida, mesmo em seus aspectos mais dolorosos — talvez como forma de suportá-la. Desde então, aprendi que é preciso encontrar poesia na vida para continuar desejando viver.

Improvisos e caminhos que não se fecham
O tempo mostrou que o Universo não havia fechado as portas em 2010. Eu segui caminhando pelas trilhas dos improvisos.
Se alguém tivesse me dito naquela época que meus caminhos estavam abertos, talvez eu não tivesse acreditado. Mas a vida continuou, como sempre continua, e no percurso aprendi que é possível viver criando sentido, mesmo quando tudo parece ruir.
O agora e as lutas de sempre
Hoje, a vida adulta não é muito diferente na construção de cenários de desesperança. Alguns acontecimentos contemporâneos me reacendem uma fagulha de confiança nas estruturas. Mas o cenário geral ainda é marcado pelo fatalismo.
A utopia, então, segue como fonte de energia para continuar lutando. Sim, pois não tenha dúvidas: as lutas continuam. Essa é a tônica.

Criar sentidos como condição de existência
O que quero dizer com tudo isso? Que, a despeito dos perrengues, a Vida - essa com "V" maiúsculo - sempre continua...
Criar sentidos que fortaleçam nossa disposição para lutar por um mundo que acreditamos melhor é condição sine qua non da existência. Não há garantias de nada — nunca houve. O que temos é o agora, e o que podemos fazer com ele.
O Poder é uma força estruturante: se não pegamos dele aquilo que nos cabe para a criação de possíveis, ele nos pega e nos entristece, automatizando a existência em caminhos ausentes de sentido.

Sobrevivência, amor e pequenas poéticas
As lágrimas daquela época secaram. Outras vieram em outros tempos... Mas eu aprendi a criar estratégias para viver produzindo sentido. E sigo nisso, dia após dia.
As poéticas do cotidiano continuam alimentando minha vontade de viver. O Amor permanece sendo meu principal combustível.
Que haja cores primaveris e outonais nos caminhos do agora. Que o corpo aprenda a tolerar algumas frustrações, para que o fatalismo não tome conta dos possíveis.
E assim, quem sabe, o amanhã seja um dia bom.

Um convite
Na clínica, muitas vezes o trabalho é justamente esse: abrir espaço para enxergar frestas de luz em meio ao fatalismo.
Se você sente que precisa desse espaço para elaborar dores, encontrar poesia ou simplesmente respirar, saiba que ele existe — e pode ser compartilhado.
Com carinho,
Micheli Aparecida de Paula
Psicóloga Clínica, Política & Social
CRP: 06/100735




